Reencontros na rima
“Quero mais e melhores blues / Com água sob os pés, sobre a cabeça, céus azuis / Mais e melhores jazz, mais e melhores Gus / Só de 'tá na busca, eu tô além do que eu supus”
Tem brasileiro em tudo que é canto, mas se nesse canto tiver uma fila, aí com com certeza vai ter muito brasileiro. Agora, fila de brasileiro fora do Brasil é outros quinhentos, ela anda, as pessoas que chegam se posicionam no final dela e não aleatoriamente até que todo seu propósito se dilua num mar revolto de pessoas. Outra coisa legal de estar em uma fila fora do Brasil, é que a gente passa a fazer parte da maior diversidade de brasileiros que alguém pode encontrar. Escuta-se uma variedade enorme de sotaques, tem gente de tudo que é canto. Grupos formados por cariocas, paraibanos, goianos e paraenses; soteropolitanos, capixabas, mineiros e gaúchos. É “tchê”, é “mano”, é “mulheque”, seguido de “trem”, “barril”, “égua”, finalizado com “daí”. De vez em quando rola um “how are you”, mas ali na fila pro rap meu amigo, era brasilidade pura, foi nela que eu entrei e já faz valer a pena.
Que viajem pensar que para entrar em contato com a maior diversidade de pessoas do seu próprio país, você precisa estar fora dele. E não é assim que a gente observa a grandeza das coisas, quando estamos fora de nossos pequenos círculos? A última havia sido há três anos atrás, logo antes da pandemia, o último show da turnê do Criolo. Lá estávamos nós, rebolando em sincronia, eu e meu nego com o resto da galera.
Três anos e pouco depois em outro endereço nos misturamos denovo com os brazucas, mas para a mesma viagem. Mais um show de rap, dessa vez do Black Alien, o Gus - ei Gus, sou sua fã. A sensação era de reencontro, recomeço, e de novidade. Que saudade que eu tava de serpentear no meio da galera segurando forte a mão do meu segurança particular, de usar uma maquiagem pra sorrir no escuro. E parece que assim, com saudade, tudo fica mais gostoso mesmo, mais presente. Eu estava pronta pro start e aí ele começou:
“Deus habita no silêncio
Que as vozes na minha cabeça quebram sem o menor senso“
Deus habita não só no silêncio. Deus habita no grave, no disco PER-FEI-TA-MEN-TE arranhado pelo DJ. Ele habita entre os corpos suados que pulam e gingam na mesma toada. O rap é combustível para quem raciocina na velocidade do beat. O rap faz pensar, faz lembrar, agradecer. O rap é meditação pra quem não ouve mais nada além da rima repetida, pra quem inspira fundo antes da estrofe narrada sem nenhuma pausa e expira forte com as mãos para o alto. No show de rap as personalidades distintas não precisam se justificar, o MC fala por todos. O rap é a rua, é o que dizem os fãs de raíz.
Além de todo o entorpecimento contagiante que só o hip-hop proporciona, eu estava precisando me entorpecer no meio do meu povo, fazer parte do todo, já que hoje oportunidades como essa são a exceção e não a regra. Lá do meio vendo pouco, ouvindo tudo, vibrando muito, cantando alto, o cerébro conseguia dividir a letra da música do monólogo interno. Era um grito pra fora e outro pra dentro, tudo junto mas não misturado.
Lá do meio me senti multidão e me senti como um grão. Senti o carinho das minhas mãos no meu corpo, e em seus gestos abstratos. Enxerguei as mais fortes lembranças de olhos fechados, e de olhos fechados quase pude ver o futuro, tão forte era a vontade de viver e compartilhar. Senti lágrima rolando sem me importar de estar sendo observada. Sorri para a fotografia do casal que não conheço. Vibrei com os êxitos transitórios entre o fim de uma música e início da próxima, afinal é ali que vive a felicidade, nos êxitos espontâneos e efêmeros.
Apesar de shows como esse serem gasolina para paixões também políticas, ali eu me senti num estado de lucidez extrema, sabendo escolher entre o sentir e o raciocinar. Assim entendi que acima de gritos em uníssono embalados pela repetição - muitas vezes irracional - da maioria, em volta de cada ser existe um espaço físico e moral a ser respeitado, além de potenciais e sonhos tão legítimos quantos os meus. Segui na minha toada, sendo fiel aos meus motivos aos meus ouvidos e minha voz, sem me retrair ou me exaltar, sem partir para a luta ou para a fuga, sem querer ditar ou consolar, sem fingir ou me posicinar. Queria apenas estar. Se não atingi expectativas alheias, não me importo.
Fora do foco, a minha própria luz era mais forte que a do palco. E assim foi até que todas as luzes se acenderam às duas da manhã e fomos convidados a nos retirar do espaço do show. Sem bis, afinal estamos na Austrália, onde as filas funcionam e o show tem hora pra acabar.