O creme de milho da minha mãe
O senso comum sobre o que é comida afetiva é destruído assim que um sujeito decide competir com o outro sobre qual das mães tem o melhor feijão. Pra você qual comida leva esse trono?
Gosto é particular e mutável, mas quando se trata de comida com memória a opinião permanece a mesma. Por exemplo: o creme de milho da minha mãe é e sempre será o mais delicioso. Ponto. Posso até passar a odiar milho, mas não o creme de milho que ela faz. Igual o feijão da minha avó e o pudim de leite da minha sogra, que apesar de todo pudim ser sinônimo de coisa boa, é o melhor que já comi e ai de alguém discordar. Inclusive, comida afetiva, com memória não se compara, devia até ser falta de educação retrucar, sabe assunto que dá briga? Política, religião e preferências alimentares. Se por um lado a comida nos conecta, ela também nos afasta. Acompanhem meu raciocínio lógico: somos o que comemos, comemos o que gostamos, eu gosto do creme de milho da minha mãe, logo quem não gosta automaticamente não gosta de mim. A partir daqui se houvera amizade entre os sujeitos, ela acaba de acabar.
Quando o grupo que compartilha a mesma experiência afetiva com uma comida define o que é gostoso, cria-se espaço para outro grupo com outras experiências discordar. Deixando inimizades de lado, pergunto-me: o que nos faz optar por uma comida e não outra? Nosso gosto, moldado não só pelos sentidos, mas também pela simbologia associada à experiência de consumir tal alimento. O que faz eu preferir o creme de milho da minha mãe e não o da mãe de alguém? O acúmulo de significados construídos ao redor dele, a sabedoria compartilhada e nutrida por gerações e degustada à mesa, as datas especiais em que a receita era preparada, a imagem das mãos dela mexendo a colher de pau com paciência. Todos esses símbolos sensibilizam a expressão dos nossos sentidos, fazendo com que o sabor e o aroma tornem-se parte de uma experiência social além de fisiológica. Comidas afetivas nunca vem sozinhas, neste caso vem até com o bendito caldo de galinha que aqui encontrou uma exceção na minha lista de produtos ultraprocessados banidos do lar.
Pelas palavras da crítica de gastronomia Ailin Aleixo, "comida de afeto é aquela que nos leva pra algum momento saudoso no qual o prato fez parte de um contexto maior de bem-estar, sensação de aconchego e pertencimento." A partir dessa abordagem vários cenários e sensações começam a vir à tona. Um deles é durante o Natal, onde minha mãe atarefada com milhares de afazeres lançou a pergunta retórica mais temida: quer fazer o creme de milho? De longe ela me ciceroneava passo a passo. Duas latas de milho, a mesma quantidade de leite, abaixe o fogo, misture a farinha no copo, não deixe empelotar. Segui à risca, fingindo naturalidade, e não foi a única vez, tampouco foi suficiente para me fazer memorizar a ordem dos fatores. Outra lembrança somos eu e minha irmã criando um jargão para milho que soa tão bem para nossos ouvidos que estendemos a pronúncia para todas as palavras com som de "lh", mas esse é um segredo de família (aí cabe mais um jargão).
Comida afetiva molda quem você é para o mundo, molda sua essência, como você deseja lembrar e ser lembrado. Conta uma história. Te faz pertencente à um grupo, uma tradição. Te faz preferir o alho ou o bugalho. Te define. Comida afetiva é gatilho para lembranças e assuntos em volta da mesa, faz fluir uma aliança formada há tempos de maneira sutil. Comida afetiva agrada mais que outras, tem poder de cura. Só de pensar já tenho esperanças de um mundo melhor, pelo menos até que o próximo desvairado ouse derrubar o trono do creme de milho da minha mãe.