Comida feia. Gente bonita.
"Comida feia e gostosa é perigosa, te enfeitiça na primeira bocada, te amaldiçoa na última (se você conseguir chegar até lá)."
Tem comida que é feia de comer. O tamanho da feiura é quase sempre inversamente proporcional à sua "deliciosidade". Elas fazem meleca, sujam o rosto, escorrem pelos dedos. Comida feia de comer, muitas vezes vistas nos catálogos de redes de fast food, são protagonistas de suculentos comerciais de TV, são desejadas num dia de ressaca, num dia de deprê, no dia que alguém passa no vestibular. Rodízio de pizza pra galera! Comida feia e gostosa é perigosa, te enfeitiça na primeira bocada, te amaldiçoa na última (se você conseguir chegar até lá). Os que as amam, desdenham do grupo de pessoas que prefere recusar um convite à uma noite feliz num pit-dog ao permitirem-se o pecado da carne, do ketchup, da batata frita, do recheio duplo. Do banana split, que obra de arte, e ainda é vintage.
Comer comida feia é uma arte.
O guloso—pré-requisito pra comê-la—inicia o ato na dúvida de onde morder, porém convicto, já sabendo que metade do conteúdo está destinado a cair para fora da boca. A segunda cena é o sujeito olhando pros lados, com a cabeça baixa enfiada no peito, conferindo se houve alguma testemunha daquela deliciosa catástrofe. Olhar de cão que carrega a culpa pelo mal feito, mas não a confessa. Normalmente limpar a catástrofe é um ato automático e imediato após a mordida. No meu caso, não admito usar guardanapos para limpar o que está feito —no plural porque um nunca é suficiente—prefiro lamber os dedos, mãos, talvez uma parte do braço. Só não lambo os cotovelos porque não nasci com uma língua excepcional de grande e também não deixaria a suculência escorrer assim tão longe. Tento ser mais rápida.
Comida assim se come com as mãos, garfo e faca não fazem o menor sentido nesse contexto. Cortar comida recheada, construída em camadas, com cobertura, texturas, molhos é uma missão fadada ao fracasso. Se enfia o garfo com segurança é na hora de cruzar a faca que... inundou-se o prato. Cria-se ali, não intencionalmente, a desconstrução do que era pra ser. (Discípulos de Ferran Adriá desconstruiriam um x-tudo de propósito. Logo, x-nada?). Desnecessário. Aqui questiono-me: desconstruir um hamburger é, também, uma forma criativa de torná-lo acessível ao público mais comportado, que prefere não se expor ao ridículo de ter maionese no canto da boca numa mesa com comensais desconhecidos? Imagine a cena de uma moçoila de porte médio, comportada, e um homão gordo segurando um sanduíche de mortadela do Mercado Central de São Paulo. Qual dos dois conseguirá abocanhar todas as fatias de mortadela e pão envolvidas no sanduíche, ao mesmo tempo? Pois é. Não sei se dá pra criar uma técnica inclusiva, não desconstrutiva, sem destruir a alma do negócio. Pra comer sem medo tem que ter envergadura e prática. Comecemos já!
Conheço um tipo de gente comportada e talentosa que consegue comer comida feia de um jeito bonito. São os jurados do Master-chef. Tinha essa jurada australiana que vou te contar, não havia um frango frito ou um taco bem recheado e cremoso que desbancasse a sensualidade naquela mordida. E pasmem, sempre com um batom chamativo. O sorriso após satisfeita era sempre impecável, nenhuma salsinha sequer. Me fazia até esquecer que existem cortes e edições de cena tão bonitas que eram. Como ela conseguia segurar, abocanhar todas as camadas sem extrapolar a capacidade da sua cavidade bucal (as minhas bochechas ficariam estiradas como balão de ar), mastigar—de boca fechada—e engolir, sem nenhuma expressão de quase morte? Quem nunca passou por essa experiência terrível, quando no meio da mastigação percebemos que fomos com muita sede ao pote mas já era tarde demais para voltar atrás. Ou engole ou cospe. Bochechas estiradas como balão de ar, olho arregalado, o ar se torna escasso, a epiglote não sabe se abre ou fecha, escorrem gotas de suor, que sufoco. Reza pra não ter um espinho no meio se for peixe frito.
Como essa arte não é para qualquer um, sugiro que criem uma competição do melhor comedor de comida feia, garanto que o finalista fará bonito e a audiência será garantida. Importante, no dia que for extrapolar convide aquele amigo desaforado, o único que tem coragem de te contar que tem uma sujeira grudada em você.
Para abrir a nossa mente para os tipos de comida que podem ser feias mas também deliciosas para muitos paladares e culturas, sugiro a série da Netflix Ugly Delicious, do chef e apresentador David Chang.
Amei tanto.. que fui buscar algo pra comer enquanto terminava de ler! Parabéns pelo texto.